Análise crítica do conto O jovem Goodman Brown (Young Goodman Brown) de Nathaniel Hawthorne

Wéverton Rodrigues
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Análise crítica do conto O jovem Goodman Brown, de Nathaniel Howthorne

“Que coisas que nós não sabemos haverá entre o Diabo e Deus”, José Saramago,
O Evangelho Segundo Jesus Cristo.

Análise crítica do conto O jovem Goodman Brown

A história nos conta que o processo de colonização das Américas ocorreu de duas formas distintas. Resumidamente, em uma parte, foi inicialmente idealizada a exploração de recursos e, em outra, o povoamento da área. O território estadunidense vivenciou a segunda forma de colonização, marcada por diversos eventos que culminaram na formação dos ideais norteadores da identidade do país. Um desses eventos marcantes foi a imigração dos membros da chamada crença puritana à colônia em formação, com o intuito de fugir da repreensão religiosa sofrida na Europa e, assim, construir um espaço onde teriam liberdade para organizar estruturas comunitárias de acordo com sua doutrina religiosa

Os puritanos visavam construir, de forma utópica, no Novo Mundo, uma espécie de sociedade modelar admirável aos olhos do próprio Deus, pautando-se no moralismo ordenado pelos princípios étnicos-religiosos de sua crença. A educação, economia e o bem-estar das comunidades puritanas estavam atrelados à vontade divina e também a uma ambição inspirada no pensamento de prosperidade no mundo terreno e espiritual. Nesse sentido, o puritanismo, no solo colonial estadunidense, não atuou somente como uma doutrina religiosa, como também foi uma teoria política de constituição e desenvolvimento social, econômico e cultural do país

Tendo em vista o que já foi exposto, este ensaio tem por objetivo discorrer acerca da composição narrativa do conto “O jovem Goodman Brown”, de Nathaniel Hawthorne, em que podemos observar inúmeras simbologias concernentes à temática religiosa de princípio puritanista, com a ajuda de uma clara manifestação da estética gótica de caráter descritivo do espaço narrativo alimentado por um terror sobrenatural conectado ao curso natural das relações humanas estabelecidas entre os sujeitos da esfera social puritana ficcional. Assim como outros trabalhos de Hawthorne, o conto se compromete em fazer um desvelamento em torno da hipocrisia puritanista difundida pela doutrina protestante norte-americana do século XVII, tendo como base a dicotomia estabelecida entre os elementos luz e trevas, comumente referidas como a oposição céu/inferno

Inicialmente, pensando em como é construído o terror e o horror na narrativa do conto, pode-se identificar ambas concepções em dois momentos distintos. A construção do terror é concebida já na atmosfera obscura de identificação do espaço narrativo, pois quando o personagem segue em direção ao seu “diabólico empreendimento”, cujas motivações e objetivos não são revelados na trama, demonstra por intermédio da descrição do caminho percorrido aspectos que em si causam ansiedade sobre o que está por vir, numa espécie de estar sob a vigilância do mal, que, podendo ser o próprio Diabo, está a espreitar quem por ali passa – ou, mesmo, quem se distancia dos caminhos da fé

Ao passo que Goodman Brown segue no deslocamento espacial rumo à floresta cada vez mais soturna e cheia de personagens excêntricos, não há apenas um distanciamento físico de sua zona de conforto, como também um afastamento de sua moral e de seus valores religiosos, representado, a princípio, pelo ato simbólico de deixar a “Fé (Faith) para trás” para ir em busca de uma aventura – que claramente manifesta-se como a representação de algo que, se não é de feitio do mal propriamente dito, mas que, por ser desconhecido, opõe-se ao conhecido/seguro -, simbólica e duplamente representada pela mulher amada e por todo o seu conjunto de crenças. Como leitores, somos envolvidos nessa trama que suscita medo e, ao mesmo tempo, curiosidade pelo que será desencadeado na sucessão dos acontecimentos em torno do protagonista, gerando, assim, efeitos de sentido que são essenciais para a composição da trama

O horror, por sua vez, materializa-se quando o personagem Goodman Brown se depara com os personagens estranhos e/ou familiares ao seu círculo de convivência na comunidade puritana de Salem. Tanto o estranho do cajado, quanto a professora de catequese Goody Cloyse representam uma ameaça às convicções do protagonista, devido à crescente ligação que estabelecem com os elementos do oculto, os quais desenrolam-se na fatídica revelação da verdade por trás da comunidade onde vive, evidenciando, assim, a desconstrução da crença religiosa. Ainda, ao tratar da atmosfera narrativa, vemos que a percepção do personagem Goodman Brown em relação ao que o cerca revela uma espécie de consciência do mal à espreita, como um presságio do perigo diante da jornada rumo ao desconhecido, na qual ele entra e, aparentemente, é tragado de forma a não poder mais retornar. Ou seja, o personagem se vê cada vez mais envolvido pela verdade que até então lhe era estranha e, diante da revelação dos fatos acerca do mundo externo – e, ainda, a respeito dele próprio -, passa a ter contato com a maldade, a imoralidade e o pecado, todos opostos à crença do personagem

A construção narrativa nos permite perceber que tal percepção funciona como a fusão do “eu” com o espaço, posto que indissociavelmente se vale das sensações experienciadas pelo personagem ao longo do conto para a criação da atmosfera sórdida e mórbida e repleta de sombras – ou, ainda, de penumbras, onde as coisas não podem se fazer nítidas – e, também, em razão das evidências apontadas pelo enigma em torno da floresta sombria e, posteriormente, pelo encontro com os personagens emblemáticos encontrados no interior desta

O conto carrega uma forte simbologia vinculada aos princípios do puritanismo, sobre o qual é  tecida a crítica, em razão dos elementos e alegorias que podem ser interpretados a partir do ponto de vista da hipocrisia inerente às pessoas de fé. Os nomes dos personagens fazem referência a suas próprias caracterizações, como no caso de Goodman, que se traduz por “bom homem”, algo que pode ser associado à ingenuidade do personagem, que, por sua vez, acaba sendo mitigada à medida em que os conflitos acontecem e as situações vão acontecendo. A esposa de Goodman tem por nome Faith, que simbolicamente é a corporificação da “fé” do protagonista e, ainda, serve para denotar o sentido de ele estar “deixando a Fé para trás” quando sai para sua jornada. Em vários momentos em que adentra mais fundo a floresta sombria, ele se sente moralmente sufocado pela culpa do afastamento ao lembrar de Faith/Fé, que agora se apresenta distante. Outro nome interessante é Goody Cloyse, professora de catecismo do povoado, podendo ser interpretada como “o bem próximo”, revelando uma contradição pelo fato da personagem ser o oposto da visão de santidade atribuída à catequista por Goodman Brown. Isso acontece porque a personagem em questão pode ser claramente interpretada como uma bruxa e, não menos importante, como uma das principais participantes dos rituais satânicos posteriormente observados

O estranho do cajado, por sua vez, é um dos personagens mais emblemáticos da narrativa, tendo em vista que sua natureza sobrenatural conduz a interpretação como sendo o próprio Diabo, o qual está presente na narrativa sob a função de uma espécie de gatilho que corrompe a convicção do protagonista, incentivando-o a adentrar cada vez mais a fundo na floresta para descobrir a verdade sobre sua comunidade de fé, o que o faria tomar consciência de sua própria realidade e, uma vez desconstruindo tudo o que havia construído sob a perspectiva religiosa, reconhecer os verdadeiros princípios da ética puritana

Além dos personagens, os objetos pertencentes a eles possuem uma simbologia intrínseca à mística puritanista, como o cajado do estranho, que se transforma em cobra, animal conhecido pela ideologia cristã como responsável pela corrupção de Adão e Eva e, por isso mesmo, fazendo clara referência ao episódio da queda – pelo qual Brown também há-de passar. Outro item é a fita rosa de Faith, esposa do personagem central, cuja cor simboliza a inocência, sensibilidade e a pureza, surgindo na narrativa, primeiramente, como ornamento da personagem e, mais adiante, como sinalizador da crença corrompida

Abordando o fantástico e o sobrenatural como um expediente onde a possibilidade da experiência metaempírica se vale de forma válida e autêntica, é possível apontar tanto para a afirmação quanto para a negação da ideia do desconhecido enquanto materialização na trama de “O jovem Goodman Brown”, de Nathaniel Hawthorne, sobretudo como opostos complementares que se somam às próprias contradições do personagem. Lovecraft (1973), em “O horror sobrenatural na literatura”, de 1927, elucidou o pensamento sobre o horror na literatura declarando que o medo do desconhecido é a espécie mais forte dessa emoção antiga que permeia a humanidade, sendo um aspecto legítimo da tradição literária gótica composta pela presença explorada das sensações provocadas pelos elementos do terror e horror

Além disso, o autor aponta que existe ainda uma demanda por parte do leitor na realização propriamente dita do fantástico, uma vez que o esforço mútuo – de quem escreve e, posteriormente, na decupação de quem lê – eleva a categoria literária à percepção do real, muito em virtude da verossimilhança. Portanto, o leitor carece, nesse sentido, de ter “uma certa dose de imaginação e capacidade de desligamento da vida do dia-a-dia”. Este fato, dentro da perspectiva da habilidade de compreensão humana, levá-lo-á a um envolvimento na trama apresentada, precisamente como acontece no conto de Hawthorne. A natureza sufocante e inexplicável criada pelo autor no conto leva, através da presença de elementos vários, à suspensão das leis da natureza e a criação da ideia de sensação, a qual é constante distintamente estimulada na narrativa

* Alexia Suiany Araújo Barbosa
Wéverton Rodrigues Silva

* Graduandos do Curso de Licenciatura em Letras (Português e Inglês) da UFAPE. Ensaio crítico produzido como requisito para cumprimento de parte da 1ª VA da disciplina de Literatura Norte-americana, ministrada pela Profª.  Drª. Monaliza Rios Silva.

REFERÊNCIAS

HAWTHORNE, Nathaniel. O Jovem Goodman Brown. In COSTA, Flávio Moreira (org.). Os Melhores Contos Fantásticos. Trad. Adriana Lisboa et al. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, pp. 57-69.
LOVECRAFT, Howard Phillips. O horror sobrenatural na literatura. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987.
SARAMAGO, José. O Evangelho Segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

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