Análise do soneto Psicologia de um vencido – Augusto dos Anjos

Wéverton Rodrigues
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Análise do soneto Psicologia de um vencido

Augusto dos Anjos

Escrito pelo poeta brasileiro Augusto dos Anjos, “Psicologia de um vencido” é um soneto publicado em 1912, através do livro “Eu”, o único que o autor lançou na carreira. O poema se caracteriza pelo verso decassílabo rimado, em que o padrão de soneto chamado italiano ou petrarquiano está vigente na construção dos dois quartetos e dos dois terceiros, que resultam em 14 versos ao todo. A saber, as quadras apresentam rimas do tipo enlaçadas, em que são emparelhadas rimas de dois em dois versos, neste caso, conforme o esquema abba. Em relação aos tercetos, que fecham o poema, é possível encontrar rimas no padrão aab ccb. Nesse sentido, o soneto de Augusto dos Anjos, a ser analisado a seguir, possui, portanto, metrificação e rima bem definidas.

A priori, o poema possui uma temática soturna, assim como se tornou característico no estilo do poeta paraibano, desvelando a psicologia humana pautada na complexidade que se esconde atrás da decadência, da desesperança, do pessimismo, do sofrimento, do horror e até mesmo e sobretudo da morte, estado final de tudo quanto é vivo. Dessa forma, Augusto dos Anjos constrói em “Psicologia de um vencido” uma atmosfera que mescla a ideia do real e do fantástico, conferindo um caráter onírico e também espiritualista ao soneto, mas sem se distanciar daquilo que é palpável, mostrando que uma das maiores virtudes do poema é a sua ambientação em torno da desqualificação iminente da existência. Nesse sentido, ao ser fundamentado sob um tom fortemente pessimista, o poema é pretensioso no sentido de se pautar na complexidade mórbida e incondicional da dor da existência e de toda a sua ambiguidade para passar a sensação de que o eu-lírico se encontra numa condição de rendição perante as forças que governam o mundo material e mesmo imaterial, assumindo, ainda, a ocorrência da inevitabilidade da morte.

O caráter pessoal da obra augustiana é sempre uma marca indelével de seu trabalho, fazendo-o ser notado até hoje, mesmo passados mais de cem anos da sua morte. Em “Psicologia de um vencido”, esta marca é fortemente presente desde o primeiro signo: Eu. Ao introduzir o primeiro verso com o pronome pessoal em questão, Augusto dos Anjos tangencia um importante limite quanto à perspectiva a partir da qual o discurso será abordado, revelando que o testemunho é, sobretudo, enunciado de uma ótica pessoal e íntima do enunciador, o qual somatiza o drama existencial a partir de uma natureza perecível e humana. E é justamente dentro desse intimismo que reside a força do soneto analisado, principalmente por caminhar sobre terrenos pavimentados, entre outras coisas, pela dualidade vida e morte. Mas, apesar de introduzir o caráter pessoal no início do verso da primeira estrofe, Augusto dos Anjos passa a caracterizar este Eu mais efusivamente a partir daí, a exemplo do que será encontrado na continuação do primeiro verso: “[…] filho do carbono e do amoníaco”. Ao explorar a ideia de paternidade, o autor aprofunda o intimismo do discurso, evocando a ideia de família. Além disso, ao se utilizar do campo semântica da química, pode-se depreender, por exemplo, que Augusto dos Anjos busca atacar o caráter imanente da constituição da vida, uma vez que o carbono é um elemento essencial para os seres vivos, fazendo parte da estrutura das moléculas orgânicas. Por outro lado, o amoníaco, também mencionado, é um gás malcheiroso presente nas matérias em decomposição, mostrando que, a despeito de um dia ter estado vivo, a condição na qual ele se encontra é a de putrefação (física e existencial) ou, no mínimo, à iminência do estado de decadência do corpo físico. Nesse sentido, o emprego dos elementos denota a ambiguidade e a contradição inerentes ao sujeito, o qual é formado pela dualidade vida e morte e ainda para denotar que, no final das contas, ele não passa de uma soma de elementos químicos, ou seja, é tão somente uma mera matéria orgânica.

No verso seguinte, o eu-lírico passa a se definir de maneira mais efusiva ao se caracterizar como um “Monstro de escuridão e rutilância”, trazendo ares de monstrualidade e bestialidade à natureza humana, além de uma ideia de horror diante de si mesmo, desestabiizando o idealismo da superioridade humana em torno do seu sentido, feito para o afastar de outras formas, conferindo, ao mesmo tempo, contraposição entre as ideias de escuro e claro, como fica evidente nos adjetivos “escuridão” e “rutilância”. Nesse sentido, é interessante apontar que o ser humano é muito mais do que o preto e o branco (ou luz-trevas) propriamente dito, mas sobretudo o que reside nos tons de cinza e, portanto, é o que reluz no espectro que compreende o intervalo entre as duas cores.

Tendo abordado no início do poema a sua condição de ser, a partir do verso terceiro, o eu-lírico passa a abordar sua condição de sentir mais propriamente dita, marcada, a princípio, pela utilização do verbo sofrer. O signo “epigênesis”, por exemplo, que pode ser encontrado no terceiro verso e cujo significado de dicionário aponta para a “modificação dos caracteres minerais de uma rocha, ocasionada por influências exteriores, por alteração ou por introdução de matérias desconhecidas”, é uma exogamia linguística, recurso que, de acordo com o crítico Anatol Rosenfeld, diz respeito à introdução de elemento estranho no fluxo histórico de uma língua. Neste caso, Augusto dos Anjos não somente causa o estranhamento de utilizar uma palavra pouco usual no vocabulário comum, mas, ainda, consegue inserir, a nível do discurso, a ideia de modificação e, neste caso, a modificação da infância (transição, crescimento), como é possível ver no verso terceiro, ao invés de usar expressões como “desde a infância” ou “desde que eu era uma criança”, por exemplo. Nesse sentido, é possível perceber que o sofrimento do eu-lírico tem origem já na sua mais tenra idade, em que “os signos do zodíaco” lhe representavam uma influência negativa, sobretudo apontando para a ideia de posicionamento astrológico no espaço sideral  como fato que contribuiu para ele se tornar exatamente o que viria a ser quando adulto. Interessante notar a correlação que o autor faz entre ciência e pseudociência, mostrando, mais uma vez, a ideia de opostos e até mesmo de contradição, característica notada e inerentemente humana. É importante destacar que o vocabulário científico utilizado pelo poeta (o que, inclusive, confere um caráter naturalista ao poema) amplia a discussão afetiva do relato do eu-lírico, sobretudo no sentido de anunciar a destruição final do Eu como uma condição natural e inevitável à qual a raça humana está condenada, reforçada a todo momento por elementos textuais que denotam justamente esta fatídica condição sob a qual todos existimos.

A segunda estrofe é principiada pelo advérbio de modo “profundissimamente”, recurso textual que ajuda a dimensionar a nível de discurso o estado do eu-lírico. Ao afirmar que sua condição hipocondríaca, que aqui pode assumir o sentido de tristeza e melancolia, é não somente profunda, mas profundíssima, ele reflete um pouco sobre a deterioração da sua própria mente perante a existência, mostrando que a decadência não é somente material, como também imaterial e essencialmente psíquica (no pré-morte). Isso fica evidente quando, no verso seguinte, ele afirma que “Este ambiente me causa repugnância…”, revelando a influência do entorno em relação à degradação da sua interioridade. Como efeito, os versos 7º e 8º mostram a forma como o corpo físico reage à condição psicológica da mente: “Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia”/ “Que se escapa da boca de um cardíaco”. Aqui, o poeta busca um efeito de sentido ao repetir a palavra ânsia, pois, com isso, ele não só enfatiza uma ideia, como também reforça seu caráter repugnante e provocativo, dada a sua significação, criando uma imagem acústica que remete à sensação de desconforto do corpo.

Analogamente, a primeira quadra é, por assim dizer, refletida posteriormente no primeiro terceto, uma vez que este é iniciado pelo signo “verme”, a fazer referência direta ao “Eu” do verso inicial do poema. Ou seja, eu (nós) sou (somos) o próprio verme. Isso acontece de forma proposital, entre outros motivos, para causar a ideia de progresso (neste caso, da decomposição do corpo) e, ainda, para induzir o leitor a fazer a equivalência entre ambos os elementos, os quais passam a ficar no mesmo nível semântico à medida que o eu-lírico enuncia seu discurso. Ademais, ao classificá-lo como “este operário das ruínas”, o poeta aponta para a funcionalidade do ser vivo em questão, “Que o sangue podre das carnificinas”/ “Come, e à vida em geral declara guerra”. Nesse sentido, ao apontar que o verme declara guerra à vida, podemos intuir não somente a condição de inimizade entre o verme e a corpo humano, a quem ele irá fisicamente destruir, e, digamos, rivalidade entre ambos, mas também a de putrefação na qual o corpo eventualmente se encontra e sobre o qual a parasita poderá se estabelecer com a sua função, caracterizando, portanto, um defunto-eu-lírico, a exemplo do defunto-autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Ainda nessa premissa, no terceto final, o poeta conclui a missão do verme ao apontar que este “Anda a espreitar meus olhos para roê-los”, na intenção de ter em curso a realização final das atividades das bactérias (como se, tendo terminado de roer o corpo, lhe restasse roer também os olhos, o que simbolicamente pode representar o estágio final do corpo de perder um dos sentidos), as quais digerem as proteínas e excretam gases (como metano, cadaverina e putrescina), exalando o forte, desagradável e característico odor de carne apodrecida. Nos dois últimos versos, tem-se, a nível de discurso, a ideia de que o corpo fora consumido pelo verme, restando finalmente apenas os cabelos, que, a exemplo das unhas, são feitos de queratina, material altamente resistente, e por isso mesmo demoram mais tempo para adentrar o estágio de decomposição depois da morte. Com “frialdade inorgânica”, o poeta está, de fato, se referindo à própria terra, lugar que abrigará o corpo destituído de vida, como fica textualmente explícito no verso, mas é possível associar ainda à própria condição do sujeito em si, o qual se encontra frio, uma vez que não mais conta com o calor do funcionamento dos órgãos, e inorgânico, caraterística do que não é orgânico e, portanto, ausente de vida sensível.

Por fim, “Psicologia de um vencido” é um soneto de caráter simbolista, sobretudo pela presença de elementos místicos e transcendentais, da subjetividade do eu e da musicalidade dos versos, sobretudo pautada nas rimas, além da presença de figuras de linguagem como a sinestesia, que exalta as percepções dos sentidos ao longo do texto, mas que apresenta características do Naturalismo, como a forte presença do caráter científico nos versos através do léxico cuidadosamente selecionado. Além disso, o soneto aborda, entre outras temáticas, a efemeridade não somente da vida, como da própria condição de existência, a qual pode comprometer a vida muito antes de seu fim propriamente dito, tendo em vista as condições nas quais ela se encontra. Discursivamente falando, o soneto de Augusto dos Anjos é uma ode à decadência física, moral e espiritual do ser humano, sobretudo porque essa ideia é evidenciada através da escolha lexical que não somente enuncia a condição na qual o corpo se encontra, mas também garante que essa enunciação seja feita de maneira ostensiva e criteriosa e com base no materialismo e no cientificismo muito bem demarcados, sobretudo através da química e da fisiologia, denotando com isso, no processo de leitura, a angústia sentida pelo sujeito poético.

Por Wéverton Rodrigues

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