Análise do soneto Não comerei da alface a verde pétala – Vinícius de Moraes

Wéverton Rodrigues
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Análise do soneto Não comerei da alface a verde pétala – Vinícius de Moraes

Vinícius de Moraes

Não comerei da alface a verde pétala é um soneto escrito pelo também compositor Vinícius de Moraes cuja temática aborda uma das coisas mais triviais do dia a dia: o ator de comer. Note, porém, que a poesia ganha novas significações à medida que avança em sua lírica, não reduzida ao simples ato de comer propriamente dito, mas promovendo algumas importantes reflexões. Nesse sentido, o poeta inicia o soneto com a utilização de um recurso que é bastante recorrente no texto lírico, a saber, a inversão sintática. Destarte, em “Não comerei da alface a verde pétala” (v.1), temos um tipo de construção sintática geralmente dispensada ao texto cujo enunciador é o eu-lírico, sobretudo na tentativa de elevar aquilo que está sendo enunciado (ainda mais por se tratar de alimento) e para desautomatizar a escrita, buscando certos efeitos de sentido. Para tanto, a escolha lexical é também bastante relevante neste contexto situacional, como fica evidente no uso do signo “pétala” ao invés de “folha”, possivelmente na intenção de valorizar o elemento cuja origem é a natureza, reimaginando sob a idéia de uma flor. Nesse sentido, é possível dizer que o poeta inicia seu soneto com uma espécie de ode à comida fresca e natural, o que é bastante interessante quando analisamos o sentido do poema à medida em que ele vai sendo construído. Isso porque, no verso seguinte, Moraes introduz outro elemento que, assim como o primeiro verso, tem a intenção de destacar um produto dado pela natureza. Neste caso, a escolhida foi a cenoura, como se pode ver no verso 2 da primeira estrofe: “Nem da cenoura as hóstias desbotadas”. Porquanto, ao usar o signo “hóstia” para se referir à verdura caracteristicamente laranja, o enunciador busca mudar seu caráter ordinário, referindo-se a versão servida em rodelas finas, tal qual acontece no rito do catolicismo, conferindo, ainda, certo grau de importância sagrada ao produto.

O que mais chama a atenção, porém, nos dois primeiros versos escritos por Vinícius de Moraes é a negação com a qual ele constrói o caráter enunciador dos versos. Nesse sentido, ele cria uma imagem de certa forma positiva tanto da alface quanto da cenoura para, em seguida, negar-lhes o desejo do consumo, finalizando, ajuda, a estrofe primeira da seguinte forma: “Deixarei as pastagens às manadas” (v.3)/ “E a quem mais aprouver fazer dieta.” (v.4), na tentativa de desvelar sua intenção inegociável de não se alimentar de produtos naturais. Apesar da construção positiva dos legumes, no verso em questão o eu-lírico acaba reduzindo os elementos a pastagens, as quais, segundo ele, devem ser destinadas às manadas, iniciando, assim, outro ponto de vista dos alimentos supracitados.

A partir da segunda estrofe, o eu-lírico se apresenta um tanto quanto mais flexível em relação ao que comer quando afirma, no quinto verso, “Cajus hei de chupar; mangas-espadas”, mostrando, assim, quais, dentre as opções existentes, ele ainda considera consumir. Nota-se novamente a presença da inversão sintática ao usar o objeto direto “caju” no início da oração e não após o verbo (neste caso, “chupar”), como é comum de se encontrar nas construções sintáticas de textos de diferentes gêneros. Em seguida, ele volta a se mostrar levemente irredutível quanto à inserção desses alimentos na sua rotina, sobretudo quando afirma que os cajus e as mangas são “Talvez pouco elegantes para um poeta”. É importante relacionar, mais uma vez, a escolha lexical com a construção lírica do poeta. Isso acontece, por exemplo, no uso do verbo “chupar” do primeiro verso e o trecho “pouco elegantes para um poeta”, o leitor acaba sendo induzido a fazer uma associação direta entre ambos, sobretudo na intenção de entender uma inadequação na combinação entre as partes. Não me parece se tratar, porém, de um simples estrelismo do poeta ou mesmo de algum tipo de elitismo, como se quisesse dar a impressão de que poeta é alguém especial e o exercício de chupar cajus não lhe fosse, por conseguinte, dispensado. Face à proposta temática do soneto e mediante a construção adotada por Moraes, fazer determinada associação contribui para o afastamento do eu-lírico das frutas e das verduras e dos legumes, as quais ficam evidente não fazer parte da dieta do sujeito poético, reafirmando seu desejo de não as tornar parte de sua alimentação, afinal, não lhe apraz fazer dieta, como a tantos outros. Além disso, podemos interpretar que “pouco elegantes para um poeta” são as mangas-espadas, tendo em vista que, após o verbo “chupar”, existe um ponto e vírgula, dando a ideia de que os elementos destacados é que se relacionam através de uma técnica chamada enjambement (recurso literário em que há a partição de uma frase no final de um verso ou uma estrofe, sem respeitar as fronteiras dos sintagmas). Nesse sentido, é possível apontar para um simbolismo na escrita, em que o poeta dá a entender que não é com espadas que ele luta, uma vez que não seria elegante, mas com palavras, sua verdadeira arma.

Em seguida, note que ele volta a inserir alguns signos do mesmo campo semântica dos substantivos anteriormente abordados, a saber, neste caso, “pêras” e “maçãs” no terceiro verso da segunda estrofe (“Mas pêras e maçãs, deixo-as ao esteta”) e “saladas” no quarto verso desta mesma estrofe (“Que acredita no cromo das saladas”). Ao rimar “poeta” e “esteta”, o autor não busca apenas estabelecer uma correspondência sonora entre os partes, mas, mais do que isso, equiparar as duas classes, tendo em vista que esteta diz respeito a uma pessoa que professa o culto do belo, o que poderia se configurar na ideia da arte pela arte, algo que o modernismo não exercita em seus versos, principalmente em termos métricos, mas que não deixa de ser algo que um poeta deixe de fazer no exercício da escrita e da observação do mundo. Dessa forma, se partirmos da premissa de que, neste caso, o poeta modernista não professa de fato o culto ao belo, teremos, nesse sentido, por outro lado, não uma aproximação entre os elementos, mas, na verdade, uma certa distinção entre eles, da mesma forma que os elementos abordados até então são distintos na sua alimentação e, portanto, não lhe apetece tornar parte dela (com a exceção dos cajus, que são mais doces).

Assim como acontece na primeira estrofe, o poeta busca executar as rimas entre o primeiro e o quarto versos e o segundo e o terceiro versos da segunda estrofe, caracterizando o padrão abba. Em ambos os casos, Moraes não prioriza necessariamente a realização de uma combinação perfeita de encontros sonoros entre as rimas, a ver o exemplo do par “pétala” e “dieta”, mas, ainda assim, consegue executar sons que possuem uma alto grau de semelhança sonora, como nos pares “desbotadas” e “manadas” e “espadas” e “saladas”.

Nos tercetos finais, que aparecem como conclusão textual e discursivamente do soneto, o poeta volta a usar a negação para afirmar aquilo que deseja, ou neste caso, para afirmar aquilo que ele (não) é. Na ocasião, em “Não nasci ruminante como os bois” (v.9), o poeta muda a perspectiva da abordagem, passando a focar na ideia de identidade, como que para mostrar que, por natureza, tendo em vista que ele não nasceu um ruminante ou “Nem como os coelhos, roedor;” (v.10), sua dieta não precisa ser à base de pastagens. Mas, como afirma no 10º e 11º versos, através do já mencionado enjambement, a saber, respectivamente, em “nasci” e “Omnívoro;”, característica de quem se alimenta tanto de matéria vegetal como de matéria animal, ele pede feijão com arroz, como fica evidente no verso seguinte e, ainda, no primeiro verso do terceto final, quando completa: “E um bife, e um queijo forte, e parati.”. Aqui, é interessante destacar ainda que o poeta evidencia um pouco do regionalismo ao incluir o elemento “Parati”, que é uma cachaça produzida na região fluminense homônima.

Por fim, o poeta, depois de ter negado diversas vezes o que não deseja comer e de ter afirmado aquilo que de fato deve fazer parte da sua alimentação, demonstra um certo estado de satisfação quando afirma que, comendo arroz, feijão e bife, morrerá, “feliz, do coração”, como pode ser lido no 13º verso do poema. É importante destacar que o morrer do coração aqui pode ser, inclusive, uma menção literal, tendo em vista que a alimentação a base de carne, que pode vir a ser gordurosa, o que acabará sendo, em certa medida, prejudicial ao coração, ocasionando um possível óbito. Além disso, é possível testemunhar, ainda, através do discurso, que a sua satisfação não se queda apenas na ideia da felicidade propriamente dita por se saciar com aquilo que realmente deseja comer, mas “De ter vivido sem comer em vão.”, mostrando que, para ele, a verdadeira dieta inclui o consumo de carne e, ainda, afirmando a ideia de que mesmo aqueles que não incluem carne na sua alimentação, os vulgos veganos e vegetarianos, irão morrer da mesma forma que os carnívoros.

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