A formação do povo brasileiro e a mestiçagem

Wéverton Rodrigues
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A formação do povo brasileiro e amestiçagem

Propondo uma análise a respeito da maneira como se deu a formação étnica e cultural do Brasil, intentano investigar a ideia de formação do povo brasileiro, sobretudo na tentativa de responder à pergunta “por que o Brasil não deu certo?”, Darcy Ribeiro tece, no livro “O Povo Brasileiro”, considerações a respeito do processo histórico em torno da construção da nossa identidade nacional, realizando, para tanto, discussões teórico-conceituais acerca da miscigenação ocorrida a partir da chegada e da exploração dos colonizadores portugueses em relação aos povos indígenas que habitavam o país antes mesmo da invasão europeia. Dessa forma, o autor do livro discorre acerca também das consequências advindas dessa violência dos idos 1500 que resultou em guerras, mortes e escravização, ao passo que lança vistas sobre os desdobramentos originados a partir da mistura de diferentes povos, a saber, em essência, índios, europeus e africanos, dando, assim, origem a uma cultura única no Brasil, situando o país no chamado “Novo Mundo”, forma como ficou conhecido o processo de expansão dos “impérios mercantis salvacionistas” europeus.

Antes de mais nada, é necessário evocar primeiramente a ideia de ninguendade, que se estabelece aqui como um conceito utilizado pelo autor para se referir ao brasilíndio, ao afro-brasileiro e ao mameluco (que não era índio nem português, mas falava tupi e nheengatu), os quais se perceberam, afinal, em uma terra de ninguém. Ou seja, aqueles que, negados pelo pai branco e ignorados pelos irmãos europeus, por sua vez, negavam a mãe índia e seus irmãos nativos e, por isso mesmo, eram tidos como não-ser, nascidos como ninguém – etnicamente falando -, gerando, assim, a ‘necessidade’ da criação de uma nova identidade, o “povo novo” ou identidade brasileira.

Nesse contexto, o autor ainda evidencia a ideia de neobrasileiro, conceito adotado em referência aos primeiros habitantes dos núcleos coloniais que, às custas de muita exploração, crueldade e autoritarismo, ao longo das décadas, eram caracterizados pela presença majoritária de feições indígenas. Some-se a isso, ainda, o mulato, originado a partir do processo de mestiçagem entre africanos e europeus e que, etimologicamente, surge do espanhol ‘mula’, que por sua vez é o resultado do cruzamento entre o cavalo e a jumenta ou o jumento e a égua; e cafuzo, originado a partir da mestiçagem entre índios e negros africanos e que têm por característica a pigmentação escura da pele, os lábios grossos e carnudos, além dos cabelos lisos.

Urge, no entanto, destacar que, apesar do desenvolvimento de uma etnia nacional em curso, a qual se diferencia culturalmente de suas matrizes formadoras sobretudo por causa das influências da mestiçagem, Darcy aponta que aquele povo também podia ser caracterizado como “velho”, no sentido de ser um proletariado externo do colonizador ou, ainda, nas palavras do autor: “um implante ultramarino da expansão europeia que não existe para si mesmo, mas para gerar lucros exportáveis pelo exercício da função de provedor colonial de bens para o mercado mundial, através do desgaste da população que recruta no país ou importa.” (p. 20).

Do processo de mestiçagem destacado acima, o cunhadismo, antiga prática indígena que consistia em ceder ao português uma moça índia como mulher e, com isso, incorporar estranhos à comunidade, se caracteriza como uma das formas mais conhecidas do que Ribeiro chama de “processo sociocultural”, que diz respeito ao as forças atuantes no processo de diversificação étnica e cultural do povo brasileiro. Em São Paulo, por exemplo, a miscigenação criada a partir do cunhadismo se desenvolveu ao ponto de a escravização de índios se tornar a principal atividade econômica. Dessa forma, é correto afirmar que o cunhadismo serviu como gênese da mestiçagem e, com isso, levou ao recrutamento de mão de obra escravizada. O processo de colonização e, consequentemente, de exploração sexual em relação às mulheres indígenas por parte dos primeiros imigrantes brancos gerou, através da mestiçagem, um processo de descaracterização cultural dos povos explorados. A introdução dos povos africanos escravizados vindos do outro lado do Atlântico reforçou ainda mais aquilo que o autor denomina como “conglomerado de gentes”. Nesse sentido, uma nova cultura despontou com o surgimento dos mamelucos e dos caboclos e, ainda, dos imigrantes europeus portugueses, italianos, espanhóis, alemães e árabes, além de, ainda, em menor quantidade, japoneses. Dito isto, a assimilação cultural é, de acordo com Darcy Ribeiro, um dos grandes pilares para a formação do povo brasileiro.

É importante destacar também que o processo de escravização dos povos originários contou com muita resistência. O plano de prosperidade econômica era cada vez mais sofisticado por parte dos colonizadores, que precisavam eliminar qualquer empecilho que fosse contrário ao seu desenvolvimento. Nesse sentido, a rebeldia indígena que, fazendo frente ao europeu branco explorador, gerava internamente nos índios um desejo de lutar para não ser escravizado. Portanto, como destaca o autor na obra, a gestação étnica é, em consonância com o que estava sendo feito, um processo de gerir etnicamente a inserção da matriz africana na cultura brasileira, ou melhor, na nova cultura que estava sendo originada, sobretudo com as investidas incessantes por parte do sistema colonial de desafricanizar a figura dos negros que aqui residiam. Para tanto, o adestramento ideológico, assumindo o coro da dupla rejeição dos novos brasileiros, a domesticação, a brutalidade e, consequentemente, o derramamento de sangue foram cruciais para a “civilização” dos povos explorados. Assim sendo, destaque-se a criação da donataria, que consistia em um processo realizado pela Coroa portuguesa em doar lotes de terras para os portugueses e, sob a confiança destes, administrar, povoar (leia-se explorar coercitivamente) e produzir (leia-se escravizar). Isso aconteceu por causa da explosão mameluca no território, levando ao sentimento de ameaça dos interesses dos colonizadores. Desse modo, cabia a grandes senhores o gerenciamento de fortunas para a criação de províncias.

O processo de adaptação e diferenciação dos povos, que gerava cada vez mais a realidade indelével de um dito povo novo, contava com a marcante presença das singularidades, fazendo com que modos brasileiros diferenciados fossem surgindo. Neste ponto, introduz-se a ideia de “Brasis”, a qual foi discutida pelo antropólogo em “O Povo Brasileiro”. Desse modo, o autor estabelece as devidas discussões em torno da identificação e também da descrição destes modos de ser que se diferenciavam e assumiam traços próprios. Culturalmente falando, o Brasil era composto pelas variantes crioula, cabocla, sertaneja, caipira e sulina, evocando, assim, por consequência, a ideia de “Destino Nacional”, termo desenvolvido pelo autor na obra em referência à estratificação social advinda do processo de formação nacional do povo brasileiro, sob o efeito de ser uma feitoria escravista gerada a partir da europização dos colonizadores, pensando, para tanto, como, uma vez estabelecida enquanto realidade social e étnica, a identidade brasileira caminharia dali pra frente e, ainda, como a transfiguração étnica, gerada a partir da desindianização forçada dos índios e da desafricanização do negro – além das trocas culturais entre originários e colonizadores e, ainda, futuras sociedades nacionais -, ecoaria na hereditariedade dos hábitos e costumes, no processo civilizatório e na prosperidade do desenvolvimento e da ordenação social, resultando no que ele chama de “Nova Roma”, termo que expressa uma ideia de brasilidade da aculturação miscigenária.

Ainda nesta perspectiva, coloca-se a ideia de mestiçagem discutida pelo antropólogo Kabengele Munanga no sentido de ampliar a percepção acerca das políticas afirmativas das cotas raciais – e de outros debates contemporâneos -, dialogando diretamente com a ideia de Destino Nacional. Isso porque, apesar de serem políticas públicas que visam uma repração histórica com o povo negro, há, por exemplo, a ideia de tribunal racial imposto pelo discurso político e ideológico que descredibiliza o funcionamento das cotas raciais. Dito isto, o autor do livro “Rediscutindo a mestiçagem no Brasil” aponta, de forma contrária a Darcy Ribeiro, que a identidade brasileira contribui para o apagamento e exclusão da identidade negra e que os abismos  impostos pelas problemáticas sociais ferem a dignidade do povo preto, além de obstaculizar a sua ascensão, promover a manutenção de critérios racialmente discriminatórios e perpetuar sua condição de inferioridade.

Pensando nas forças das ideologias e das tradições, sobretudo no sentido discriminatório e segregacionista da coisa, Munanga discute o conceito de mestiçagem sobre a rota da ideologia do branqueamento e da superioridade branca. Desse modo, ao discutir o conceito a partir do ponto de vista racialista, o autor destaca as relações sociais, econômicas e jurídicas em torno da ideia de raça e da estruturação do racismo. Ao fazer um parelelo com o conceito de democracia racial, de Gilberto Freyre (que apontava existir democracia nas relações entre senhores e escravos no período colonial), em que, para Darcy Ribeiro, negros e brancos estão sob uma suposta condição equânime no que diz respeito a oportunidades – para o autor, as pessoas estão mais distantes social e economicamente do que racialmente -, destaca-se a ideia de ambiguidade de raça/classe discutida por Munanga, sobretudo na tentativa de entender como a mestiçagem acaba funcionando como mecanismo de aniquilação da identidade negra e afro-brasileiro, uma vez que o próprio entrecruzamento das raças dividia os mestiços entre superior, degenerado e instável, teorizando em favor da criminalização do corpo negro e mestiço. Ou seja, Ribeiro e Munanga concordam na ideia de que democracia racial é um mito. Dessa forma, Munanga aponta para a ideia de mestiçagem como símbolo da identidade brasileira e também para a ideia deturpada de miscigenação natural e genealógica. Nesse sentido, ele levanta a ideia de pluralismo como contraposição do pensamento acerca da construção do Brasil, sobretudo na intenção de unir a identidade brasileira e a identidade negra sob uma ótica reducionista, a qual visa senão forjar a segunda.

De acordo com João Pacheco de Oliveira, no texto “Muita terra para pouco índio? Uma introdução (crítica) ao indigenismo e à atualização do preconceito”, o problema em torno da temática do índio no Brasil não decorre do índio propriamente dito nem da sua existência tampouco, mas, sim, do homem branco. Isso acontece pelo antagonismo que este sempre exerceu em relação aos povos originários. Para o autor, o relacionamento entre brancos e índios deve ser controlado pelo Estado. Nesse sentido, em 1910 foi criado o órgão indigenista chamado Serviço de Proteção aos Índios (SPI), posteriormente substituído pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Tidos como os “primeiros brasileiros”, os índios eram considerados os guardiões das fronteiras do território nacional. Dessa forma, mudou-se, ao longo dos anos, a forma de se pensar o problema indígena, indo além da expressão demográfica no contexto brasileiro e se estendendo ainda para áreas outras, como fundiárias, energéticas, minerais, ambientais, de crescimento econômico, de políticas migratórias, de relações internacionais e de questões estratégicas.

Apesar do estabelecimento de um órgão que em tese funcionaria em favor dos índios, tem-se que, na verdade, o órgão era sobre o índio e não para o índio. Ou seja, o SPI acabava cumprindo a função ideológica de servir como instrumento de uma política de ocupação das fronteiras e daquilo que era conhecido como vazios interiores. Nesse sentido, buscava-se a nacionalização da figura do índio para, em consonância com o funcionário-indigenista, o qual muitas vezes era representado por um militar, promoveria o desenvolvimento dos interesses nacionais. Dessa forma, a intenção não era, por exemplo, conservar os povos indígenas e protegê-los da invasão e da violência.

O regime de tutelagem, destacado pelo autor, por outro lado, ainda contribui negativamente para a vulnerabilidade do povo em questão. Na época do período colonial, por exemplo, os aldeamentos representavam algo característico do processo de Conquista por parte dos portugueses na expansão além mar e, sob administração e supervisão dos missionários, os índios acabavam sendo transformados em súditos cristãos e meramente úteis aos propósitos dos colonizadores. Nesse sentido, a questão da tutela foi um fator que interveio fortemente na definição do destino nacional – numa clara menção à ideia discutida por Darcy Ribeiro -, sobretudo se considerarmos que aos tutelados eram relegados menos direitos embora lhes fosse designado também o trabalho compulsório e, não obstante, a necessidade de adequação sociocultural à colonização portuguesa.

REFERÊNCIAS 

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: Identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

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